Amor em Minúscula de Francesc Miralles


Certa vez, deparei-me com um lindo texto em que Milton Hatoun transborda um sentimento misto de saudade, lamento e amor ao tecer uma elegia à uma gata falecida. Em um determinado ponto do texto, ele escreve o seguinte: "O cachorro é um romance, e o gato, um poema". Uma máxima chinesa, segundo o autor. Eu não a conhecia. Porém, a considero genial. È ilustrativa. De fácil visualização e correspondência. A título de maiores explicações, Hatoum diz:


"Pense no cotidiano de um cão: nas peripécias, no corre-corre, nos latidos, nos momentos de exaltação e melancolia. Nos ganidos de dor, saudade ou fome, nas fugas, nos saltos estabanados, nos ataques de raiva, nas mordidas, no afeto meloso, nas disputas ciumentas...tudo isso lembra o trançado de eventos e peripécias de um romance. Agora imagine um gato no crepúsculo: a pose hierática, a atitude ensimesmada, o salto sem ruído, a expressão do olhar, a repetição dos gestos, como se cada passo repetisse o anterior, a fixação do olhar em transe focando as asas de um pobre beija-flor...".

Os cães são folhetinescos. Os gatos possuem a interioridade enigmática de um poema contraditório e sinuoso. Hatoum avança em sua comparação e lança a máxima: "Algo me diz que os felinos vivem no tempo, e os cachorros , no espaço". Excelente comparação. Pois, como diz meu pai, sobre espaço a gente tenta obter domínio e estabelecer limites. Do tempo, pouco sabemos. Ele é imprevisível e incontrolável. Enigmático como um gato.


Essa semana conheci um gato que virou um romance com prosa poética. Eis o motivo dessas minhas especulações desordenadas: "Amor em minúscula" de Francesc Miralles que terminei de ler há pouco. A trama aborda a magia dos pequenos atos. A alegoria do efeito borboleta estabelece a tônica do romance: o bater de asas de uma borboleta pode afetar o curso ordinário das coisas e repercutir como revoluções no outro lado do mundo.


Aplicada ao contexto do romance, um simples pratinho de leite que Samuel (o protagonista) oferece a Mishima (o felino co-protagonista) é o desencadeador das mais profundas reviravoltas externas e internas na vida de Samuel. A partir daí, a vida enfadonha de Samuel começa a desenredar-se. Desse encontro com o gato, uma corrente do bem se forma. Logo, Samuel faz novos amigos e lhe é dada a chance de reviver um amor que sempre esteve em vias de acontecer.


Com uma mistura de assuntos de ordem quânticas e que envolvem também a espiritualidade, a história nos mostra a física das possibilidades, dos acontecimentos potenciais. Samuel relaciona a mudança de sua vida ao gato Mishima como se esse último fosse seu talismã. A história parece centrar integralmente nesse jogo contra o azar. Na realidade, porém, é interessante ver o que Samuel não percebe. As mudanças é ele quem faz quando se permite ser proativo. È ele quem quebra a casca de sua solidão: uma clara evocação da metáfora criada por Herman Hesse, uma dentre várias referência literárias presentes na fábula moderna de Miralles.


Altamente recomendável. O livro foi estrategicamente desenhado para fazer fluir a leitura a julgar pelos capítulos curtíssimos. È instigante pelos enigmas que se revelam ao fim da narrativa intimista. Apesar da leveza que torna inteligível cada linha traçada por Miralles, o livro esconde nas estrelinhas uma profundidade de sabedoria que passa despercebida aos céticos.


Escolhi esse livro pelo primeiro parágrafo. Um "toc" íntimo e pessoal que adquiri no que tange a compra de livros. Já que não gosto de partir para o final para não macular a surpresa, eu vou à caça de parágrafos iniciais que, no mínimo, sejam instigantes. Tal como esse trecho que registro aqui:


"Faltava um suspiro para que o ano acabasse e começasse outro. Invenção humana para inventar calendários. Afinal de contas, decidimos arbitrariamente quando começam os anos, os meses e até as horas. Organizamos o mundo como queremos e
isso nos deixa tranqüilos. È possível que, sob um caos aparente, o universo tenha, apesar de tudo, uma ordem. Mas, sem dúvida não será a nossa".



6 comentários:

lili disse...

Vivi que lindo post!
Adorei tb o texto de Milton Hatoun.
Bom, sou suspeita. Tenho 6 gatos e mais dois de rua. Mas concordo com o autor. Acho que é por isso tb que muitas pessoas não gostam dos gatos... Mas, pessoalmente adoro a maneira independente e enigmática deles.

Fico feliz que vc gostou do livro!!!

Beijossss
Lili

Driza disse...

Adorei, Vivi
meus sentidos estão aguçadíssimos de vontade de ler este livro.
bjs

Vivi disse...

Leia, Driza, vale a pena mesmo!;)

Lili, imagino que quem tem gatos tenha se deliciado com a história. O autor do livro tem gatos também. e a história para sempre fazer referência a sua vida pessoal.

Beijocas

Regina disse...

Adorei seu comentário e aguçou minha vontade de ler esse livro.
Agora, acho que não há nada como ter um cão para nos receber em casa depois de um dia de trabalho!!! Pelo menos a minha Mel faz com que eu me esqueça de tudo e vire criança novamente.

bjs

Vivi disse...

Eu não tenho animais em casas. Mas, sempre acho lindinho um cãozinho com sua alegria espevitada, Regina.

Beijos
Vivi

Driza disse...

Emprestei o livro e acabei de ler ontem, mas hoje já encomendei o meu, pra ler e reler de novo e de novo e de novo.
Cheguei a ler duas, três vezes alguns parágrafos para não perder nadinha e conseguir assimilar tudo.
É uma história didática, leitura obrigatória na escola da vida.
"O contrário é o conveniente" já estou aplicando no meu dia a dia. E não é que produz mágica mesmo?
Tb estou distribuindo muitos beijos de borboleta no meu círculo, não tem quem não goste.
É uma leitura muito gostosa, sem pressa, li pausadamente, sem pressa de chegar ao final. Ao contrário, adiando o fim.
Amor em minúscula, leia!
bjs
Driza

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