"Pense no cotidiano de um cão: nas peripécias, no corre-corre, nos latidos, nos momentos de exaltação e melancolia. Nos ganidos de dor, saudade ou fome, nas fugas, nos saltos estabanados, nos ataques de raiva, nas mordidas, no afeto meloso, nas disputas ciumentas...tudo isso lembra o trançado de eventos e peripécias de um romance. Agora imagine um gato no crepúsculo: a pose hierática, a atitude ensimesmada, o salto sem ruído, a expressão do olhar, a repetição dos gestos, como se cada passo repetisse o anterior, a fixação do olhar em transe focando as asas de um pobre beija-flor...".
Os cães são folhetinescos. Os gatos possuem a interioridade enigmática de um poema contraditório e sinuoso. Hatoum avança em sua comparação e lança a máxima: "Algo me diz que os felinos vivem no tempo, e os cachorros , no espaço". Excelente comparação. Pois, como diz meu pai, sobre espaço a gente tenta obter domínio e estabelecer limites. Do tempo, pouco sabemos. Ele é imprevisível e incontrolável. Enigmático como um gato.
Essa semana conheci um gato que virou um romance com prosa poética. Eis o motivo dessas minhas especulações desordenadas: "Amor em minúscula" de Francesc Miralles que terminei de ler há pouco. A trama aborda a magia dos pequenos atos. A alegoria do efeito borboleta estabelece a tônica do romance: o bater de asas de uma borboleta pode afetar o curso ordinário das coisas e repercutir como revoluções no outro lado do mundo.
Aplicada ao contexto do romance, um simples pratinho de leite que Samuel (o protagonista) oferece a Mishima (o felino co-protagonista) é o desencadeador das mais profundas reviravoltas externas e internas na vida de Samuel. A partir daí, a vida enfadonha de Samuel começa a desenredar-se. Desse encontro com o gato, uma corrente do bem se forma. Logo, Samuel faz novos amigos e lhe é dada a chance de reviver um amor que sempre esteve em vias de acontecer.
Com uma mistura de assuntos de ordem quânticas e que envolvem também a espiritualidade, a história nos mostra a física das possibilidades, dos acontecimentos potenciais. Samuel relaciona a mudança de sua vida ao gato Mishima como se esse último fosse seu talismã. A história parece centrar integralmente nesse jogo contra o azar. Na realidade, porém, é interessante ver o que Samuel não percebe. As mudanças é ele quem faz quando se permite ser proativo. È ele quem quebra a casca de sua solidão: uma clara evocação da metáfora criada por Herman Hesse, uma dentre várias referência literárias presentes na fábula moderna de Miralles.
Altamente recomendável. O livro foi estrategicamente desenhado para fazer fluir a leitura a julgar pelos capítulos curtíssimos. È instigante pelos enigmas que se revelam ao fim da narrativa intimista. Apesar da leveza que torna inteligível cada linha traçada por Miralles, o livro esconde nas estrelinhas uma profundidade de sabedoria que passa despercebida aos céticos.
Escolhi esse livro pelo primeiro parágrafo. Um "toc" íntimo e pessoal que adquiri no que tange a compra de livros. Já que não gosto de partir para o final para não macular a surpresa, eu vou à caça de parágrafos iniciais que, no mínimo, sejam instigantes. Tal como esse trecho que registro aqui:
"Faltava um suspiro para que o ano acabasse e começasse outro. Invenção humana para inventar calendários. Afinal de contas, decidimos arbitrariamente quando começam os anos, os meses e até as horas. Organizamos o mundo como queremos e
isso nos deixa tranqüilos. È possível que, sob um caos aparente, o universo tenha, apesar de tudo, uma ordem. Mas, sem dúvida não será a nossa".
6 comentários:
Vivi que lindo post!
Adorei tb o texto de Milton Hatoun.
Bom, sou suspeita. Tenho 6 gatos e mais dois de rua. Mas concordo com o autor. Acho que é por isso tb que muitas pessoas não gostam dos gatos... Mas, pessoalmente adoro a maneira independente e enigmática deles.
Fico feliz que vc gostou do livro!!!
Beijossss
Lili
Adorei, Vivi
meus sentidos estão aguçadíssimos de vontade de ler este livro.
bjs
Leia, Driza, vale a pena mesmo!;)
Lili, imagino que quem tem gatos tenha se deliciado com a história. O autor do livro tem gatos também. e a história para sempre fazer referência a sua vida pessoal.
Beijocas
Adorei seu comentário e aguçou minha vontade de ler esse livro.
Agora, acho que não há nada como ter um cão para nos receber em casa depois de um dia de trabalho!!! Pelo menos a minha Mel faz com que eu me esqueça de tudo e vire criança novamente.
bjs
Eu não tenho animais em casas. Mas, sempre acho lindinho um cãozinho com sua alegria espevitada, Regina.
Beijos
Vivi
Emprestei o livro e acabei de ler ontem, mas hoje já encomendei o meu, pra ler e reler de novo e de novo e de novo.
Cheguei a ler duas, três vezes alguns parágrafos para não perder nadinha e conseguir assimilar tudo.
É uma história didática, leitura obrigatória na escola da vida.
"O contrário é o conveniente" já estou aplicando no meu dia a dia. E não é que produz mágica mesmo?
Tb estou distribuindo muitos beijos de borboleta no meu círculo, não tem quem não goste.
É uma leitura muito gostosa, sem pressa, li pausadamente, sem pressa de chegar ao final. Ao contrário, adiando o fim.
Amor em minúscula, leia!
bjs
Driza
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