Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite - Fal Azevedo


Boitempo II, livro de poemas memorialísticos de Carlos Drummond de Andrade, traz o seguinte subtítulo: "esquecer para lembrar". Parafraseando e contradizendo o "poeta maior", a pintora quarentona Alma passa em revisão sua biografia, num ritual pessoal de "lembrar para esquecer" ? um acerto de contas com o passado na tentativa de escrever felicidade em seu futuro, algo mais intenso do que "sigo vivendo". Alma é a protagonista de Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite, primeiro e surpreendente romance da paulistana Fal Azevedo.A autora constrói, no livro, a narrativa de maneira não-linear, alternando discursos diferentes, momentos distantes e vozes distintas. Tais vozes interagem indiretamente com Alma, através de cartas, postais e e-mails, e confundem-se com a própria protagonista e narradora ? qual um diálogo interno de alguém em auto-análise.O nome da personagem, aliás, é o sopro de uma humanidade marcada por conflitos, diferenças, feridas. Alma desenrola, no presente, em sua casinha, na estância balneária de Bertioga, em São Paulo ? em meio aos vários cachorros, inúmeros gatos, os bolos, os mimos do vizinho, Seu Lurdiano, as missivas e correios eletrônicos de uma extensa legião de amigas e amigos (Biuccia, Cláudio, Tela, Binho, Ticcia, Gigio, Rose, entre outras e outros) ?, o novelo da sua vida, atravancada em nós trágicos e dolorosos.Cada capítulo da obra é intitulado com o nome de alguma comida, tempero ou bebida ? "Doce de leite", "Croquete", "Manjericão", "Suco de uva". Paladares que marcam o gosto, na memória, de cada instante vivido com pessoas que forjaram sua história: pai; mãe; a irmã do meio, Violeta; o padrasto, Eliano; a meia-irmã, Ana Beatriz; os avós paternos, Estela e Juan; os maternos, Greta e Max; o ex-marido, Otávio; a única filha, Fernanda. A lembrança é um relicário de sensações muito reais; as cicatrizes são as provas cabais da experiência ? "uma vida feita de pequenas omissões e minúsculos assassinatos". A vida que só Alma sabe viver.Verdadeiro soco no estômago, o livro de Fal Azevedo é uma grata surpresa na cena literária contemporânea, que emociona sem pieguices. As perdas dos entes mais queridos de Alma levam, invariavelmente, o leitor a reavaliar suas relações familiares e a pensar, com o coração apertadinho, em ligar para o pai, a mãe, os irmãos, os filhos, quem quer que lhe seja especial. Afinal, a morte, essa novidade indesejada, sempre nos pega de surpresa e rouba um pedaço da gente.

Eu choro, sabe? Eu choro porque a dor não me deixa respirar e mesmo assim eu respiro fundo e solto o ar em oito tempos, como nos exercícios da aula de canto, enquanto bato claras em neve e meço a quantidade de leito para o suflê, enquanto ralo o queijo ou penduro a roupa no vara, enquanto misturo as tintas, enquanto lavo os pincéis.
Choro porque sou impotente, porque tudo posso. Eu choro quase sempre. Quase o tempo todo, porque o humano que há em mim se atira do parapeito e não há volta. Mas eu volto, todas as vezes, todos os dias.


Um achado! Livros como esse bem ilustram o lugar da narrativa na nossa vida. Como palavras tão públicas, tão expostas encontram guarida no nosso esconderijo privado! Alma ao reconstruir os momentos marcantes de seu passado fez com que eu marcasse um encontro com o meu. Passado a limpo, a sujo. Passado amarrotado, amarrotado passado.

È um livro que fala do amor, da dor, da esperança, da rendição, da redenção, e de tantos outros sentimentos atávicos à humanidade. A construção do texto é caótica intercalada das cartas e dos emails trocados entre Alma e seus amigos.

È interessante destacar que a escrita de Fal tem os pés e o corpo inteiro na escrita internética, ou seja, é pura brincadeira. Divertido mesmo de se ler. Quem acompanha o blog da Fal sabe a natureza da diversão da qual faço menção, ela subverte a língua com licença poética do coloquial.

Fato é que me peguei na cadência desordenada da história que, por mais que não pareça faz todo o sentido para a narrativa. Pequenas sutilezas de Fal que conferem originalidade ao que escreve.

Vou investir na leitura das obras de Fal Azevedo, anotem aí. Porque Fal sabe que a tragédia é parelha a comédia tanto na ficção como na realidade. As desgraças na boca de Alma tocam o escárnio e eu estou aqui totalmente ensimesmada lambendo minhas reminiscências. Ah, eu tenho uma Alma dentro de mim, trocadilhos à parte e a junto. Fal Azevedo é inteligente, sabe que as recordações tem cheiro, tem gosto e resfolegam.

PS: Assisti a uma entrevista da Fal no Sem Censura e, depois, na madrugada, o que pensei ser um sonho era o papo de Carmo “Zé Bob” Dalla Vecchia indicando o livro no GNT e a Marília Gabriela aplaudindo e dizendo: gracinha, gracinha! A sineta de Pavlov tocou e, no outro dia, pretextando acompanhar a minha irmã ao dentista, passei na livraria para pescar meu exemplar. Condicionada, eu? Nem um pouco. Determinada.

Curiosidade suscitada na leitura

Conjugação do verbo polir e competir no presente do indicativo:

Eu pulo, tu pules, ele pule, nós polimos, vós polis, eles pulem
Eu compito, tu competes, ele compete, nos competimos, vós competis, eles competem.

4 comentários:

Driza disse...

A curiosidade já parte do título né? Diferente e singular. Depois a Vivi em para somar um tantão de elogios. O jeito é sacar meu Visa.
Ah! Preciso assistir mais aos programas da madrugada, pelo visto tem bastante conteúdo. Vou tentar colocar uns palitinhos os olhos - daquele jeito que segura a pálpebra aberta.

bjs

Driza

Regina disse...

Minha curiosidade foi aguçada pelo seu comentário!!! Deve ser um livro realmente bom.

bjs

Regina

Livros e Outras Coisas disse...

A capa é de um extremo bom gosto. Far-me-ia escolher o livro e folheá-lo. :)

Jeanne Rodrigues disse...

Poxa, Vivi!

Nao conhecia...
Vou ter que remediar isso.

Bjos,

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